Impulsionados por João Paulo II (1920-2005), os processos de canonização cresceram ainda mais com o papa Francisco no comando da Igreja Católica. Agora, começam a ser retomados depois de uma interrupção atribuída à pandemia de Covid-19. O atual pontífice é o maior responsável por consagrações de santos na história do catolicismo, com 45% das canonizações.
Francisco pontífice sempre demonstrou ter apreço por estimular e reconhecer devoções populares e há muito superou o antecessor polonês. De março de 2013, quando se tornou papa, até outubro de 2019, na celebração da última missa de canonização, o argentino consagrou aos altares a incrível marca de 897 santos. João Paulo II, por sua vez, canonizou 482 nomes durante os 16 anos de pontificado.
O ano de 2020 foi um raro momento dos tempos modernos em que o Vaticano não reconheceu nenhum novo santo. Desde a primeira canonização presidida por João Paulo II, em 1982, só haviam passado em branco 1985 e 1994 — este último, com uma possível explicação: o papa havia fraturado o fêmur e precisou reduzir a agenda devido às dificuldades de locomoção.
Nesta segunda-feira (3), haverá um consistório em que será anunciada a data para a retomada da consagração de santos. Sete religiosos serão canonizados: o oficial das Forças Armadas, explorador, geógrafo, linguista e eremita francês Charles de Foucauld (1858-1916); o oficial da corte indiano Devasahayam Pillai (1712-1752), que assumiu o nome cristão de Lázaro; o padre francês Cesar de Bus (1544-1607); os padres italianos Luigi Palazzolo (1827-1886) e Giustino Russolillo (1891-1955); e as religiosas italianas Maria Domenica Mantovani (1862-1934) e Maria Francesca de Jesus (1844-1904), cujo nome de batismo era Anna Maria Rubatto.
Consistório é o nome que se dá para a reunião de cardeais, convocada e presidida pelo papa. No caso do encontro agendado para esta segunda-feira, trata-se de um consistório ordinário, ou seja, embora todos os purpurados sejam convidados, espera-se a presença apenas daqueles que estejam em Roma ou arredores. Essa característica dos tempos de pandemia tornará mais simples o encontro.
Voz do povo tem força nas canonizações
Em 28 de novembro, quando ocorreu o último consistório realizado para a nomeação de novos cardeais, houve ausências por conta da situação sanitária. “Geralmente os que não podem comparecer justificam a ausência. Mas nesse último, pela primeira vez, alguns participaram por videoconferência”, explica o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
Ele acredita que, dado o precedente aberto, eventualmente os consistórios a partir de agora possam permitir esse tipo de participação remota, em casos de necessidade. “Mas a ideia dos cardeais presentes fisicamente em Roma é uma questão histórica e simbólica”, salienta ele, sobre o papel dos cardeais como conselheiros papais.
Já a celebração da canonização em si, cuja data será anunciada na segunda, realmente seria difícil de ocorrer com a pandemia fora de controle. “Seria complicado, pelo próprio sentido da cerimônia”, explica a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
“Numa canonização, a pessoa recebe o título de ‘santa’ e seu culto é ‘estendido a toda a Igreja Universal’, para usar a linguagem técnica. Não é um ato só da hierarquia católica, ao contrário do que se pensa. Os canonistas reiteram que além do processo em si, a ‘vox populi’, ou seja, a voz do povo de Deus, tem seu peso. O povo, que espalha a fama de santidade da pessoa, é parte fundamental desse processo”, afirma Medeiros.
O vaticanista italiano Andrea Gagliarducci avalia que uma canonização de forma reservada “não faria sentido”. “Os fiéis devem estar presentes [à cerimônia], e o papa deve celebrá-la”, pontua ele, que acredita haver condições para realizar a celebração neste ano de 2021 seguindo protocolos de segurança.
Missas de canonização costumam ser celebrações concorridas, com a Praça São Pedro lotada de fiéis, geralmente reunindo caravanas dos países de origem dos novos santos. Em outubro de 2019, na última celebração do tipo, eram muitas as bandeiras brasileiras empunhadas na cerimônia que fez de Irmã Dulce (1914-1992) a 37ª santa brasileira. Cerca de 25 autoridades do Brasil, como o vice-presidente Hamilton Mourão, os então presidentes do Senado, Davi Alcolumbre, e da Câmara, Rodrigo Maia, acompanharam a cerimônia. Também integraram a comitiva nacional o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, e o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.
Há casos em que o Vaticano celebra as canonizações no país de origem do novo santo — exigindo uma logística impossível em um período sanitariamente inviável. Foi assim, por exemplo, que o mundo viu o então papa Bento XVI reconhecer, em maio de 2007, Frei Galvão (1739-1822) como o primeiro santo nascido em solo brasileiro. A missa, naquela ocasião, foi celebrada no Campo de Marte, em São Paulo.
As origens dos novos santos
Dentre os sete novos nomes apresentados, o mais aguardado é o do francês Charles de Foucauld. Sua biografia é bastante interessante: órfão de pai e mãe na infância, tornou-se oficial das Forças Armadas da França e acabou enviado para a Argélia. Aos 23 anos, deixou a vida militar e decidiu explorar o Marrocos. Convertido ao catolicismo, viveu como monge trapista por um período — depois saiu da ordem e adotou hábitos de ermitão.
Assassinado no deserto da Argélia, Foucauld tornou-se, para a Igreja, um mártir da fé. “É considerado o profeta do diálogo religioso entre o cristianismo e o islã, entre os vários títulos ligados à sua trajetória. Sendo assim, nada mais significativo que a canonização seja feita pelo papa Francisco, que investe muito nessa aproximação”, avalia Medeiros. “A vida de Foucauld se tornou universalmente conhecida e é óbvio que muitos fiéis rezam a ele, conhecem sua história”, acrescenta Gagliarducci. “Sua história é fascinante.” Também vale ressaltar a presença de um mártir indiano entre os que serão canonizados, no caso o oficial da corte indiano Devasahayam Pillai, depois conhecido como Lázaro. Embora o país não tenha maioria católica, é um local que tem sido contemplado pelo olhar atento de Francisco às periferias do mundo. Em 2019, na última cerimônia de canonização ocorrida, foi canonizada Mariam Thresia Chiramel Mankidiyan (1876-1926), uma religiosa indiana.
“Trata-se de um país onde a fé católica se fortalece, com muitas vocações”, analisa o vaticanista Domingues. “Francisco enfatiza a questão da fé popular, então observa essas devoções e as joga para toda a Igreja.”
Os demais nomes são todos de lideranças de ordens religiosas — e, claro, há um fator político importante que acaba influenciando em tais processos, que acabam por conferir maior prestígio e notoriedade para tais congregações.
Francisco, o fazedor de santos
Se em oito anos de papado Francisco já vai atingir a incrível marca de ter canonizado 904 nomes, considerando os apresentados nesta segunda, é preciso fazer uma ressalva que esse número só foi possível graças a canonizações coletivas, quando o papa reconhece como santos, de uma vez só, um grupo de grande de cristãos, geralmente martirizados.
E em maio de 2013, Francisco bateu o recorde absoluto de santos feitos de uma só vez, quando canonizou os 813 moradores da cidade de Otranto, no sul da Itália, que foram dizimados por otomanos em 14 de agosto de 1480. A maior canonização coletiva da Igreja anterior a isso havia sido presidida por João Paulo II em outubro de 2000: na ocasião, foram santificados 120 mártires chineses.
A reportagem da CNN Brasil cruzou dados levantados pelo teólogo e filósofo Fernando Altemeyer Júnior, chefe do departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com informações da Congregação para as Causas dos Santos, organismo da Cúria Romana responsável pelos processos de canonização. Com os sete nomes a serem oficializados neste ano, a Igreja atingirá a marca de 2 mil santos.
Considerando aqueles cuja identidade é conhecida — o que nem sempre é possível nos casos desses grupos de mártires santificados em conjunto —, o levantamento mostra de 68% são de religiosos como padres, bispos, papas, monges, freiras etc. E a preponderância é masculina: 78% dos eleitos para os altares católicos são homens.
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