José de Anchieta Fernandes
Aos 74 anos, Dr. Anchieta Fernandes completou a poucos dias um ano afastado das cirurgias obstetras que marcaram a maior parte de sua vida, devido problemas de saúde. Por ele, ainda estava ampliando sua marca impressionante de mais de 40 mil partos nos 44 anos dedicados a arte de colocar no mundo novas vidas. “A minha se passou, praticamente, em centros cirúrgicos, em sobre aviso permanente. Atividade que me trouxe muita satisfação, onde me sentia realizado”, resume.
Nascido em 02 de maio de 1941, no sítio Caraúba Torta, hoje cidade de Almino Afonso, foi criado em Olho D’água dos Borges, na fazenda Bela Flor, administrada ainda hoje por sua mãe, Antônia Fernandes de Oliveira, aos 95 anos, com sua total lucidez. O pai, já falecido, Raimundo Nonato de Oliveira, seu Nedoca, era agricultor.
Dos catorze filhos do casal, apenas três se criaram. Dr. Anchieta foi o primeiro que escapou, e por pouco, pois a desidratação, a diarreia, a infecção intestinal, o sapinho, entre outras doenças, mantinham a mortalidade infantil em alta no interior do Nordeste naqueles tempos. Existia muita carência na assistência médica e muitas crianças não resistiam ao primeiro ano de vida. Outras duas irmãs dele escaparam: Laurita, professora já falecida; e Laurenza, pedagoga aposentada da UERN.
O BANCO IRMÃOS FONTENELI – Os primeiros estudos de Dr. Anchieta foram na Escola Isolada de Olho D’água, que ficava a cerca de 5 quilômetros da fazenda Bela Flor. “Todos os dias íamos e voltávamos a pé, eu e alguns outros colegas. Depois passamos para o lombo de jumento. Até o quarto ano primário foi esta a minha luta”, conta.
Aos 14 anos, foi para Natal estudar no Grupo Escolar Modelo Augusto Severo, e depois, a convite da família do futuro médico Mario Vale, acabou internado no Colégio Diocesano de Patos, na Paraíba, um colégio por demais conceituado naquela época. Foi também através de Dr. Mario Vale, hoje dono da Policlínica, que Dr. Anchieta veio concluir o ensino fundamental em Mossoró, no Diocesano, onde fez até o 2º ano do ensino médio. Para o terceiro ano, por indicação do colega do Tiro de Guerra José Alves, o destino foi o Colégio São José, de Fortaleza, onde paralelamente também fez um cursinho para o vestibular.
Todo este esforço valeu a pena, pois em 1964, em seu primeiro vestibular, o matuto tímido do interior passou em 12º lugar no difícil curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará. “Foi uma grande vitória, pois premiou um esforço meu e de minha família em me manter Fortaleza, com pouco dinheiro, morando em pensão, tendo que todos os dias cruzar a cidade para as aulas do cursinho. Minha única diversão era ir ao cinema”, relembra.
Nos cinco anos seguintes, para sua manutenção na Universidade, o pai mandava o dinheiro para seu sustento através do irmão de Benevenuto, um negociante de pele de animais de Apodi, que morava em Olho D’água e que todos os meses ia para Apodi entregar peles ao irmão. Benevenuto reunia seu estoque e viajava até Fortaleza para a empresa Irmãos Fonteneli, uma exportadora de peles. “Todos os meses eu chegava na empresa para pegar o dinheiro que meu pai havia mandado. Era como se fosse o meu banco particular, em um tempo onde existia a confiança entre os homens”, enaltece.
RECONHECIMENTO DO TIRO DE GUERRA – E assim Dr. Anchieta concluiu o curso de Medicina em 1969. No ano seguinte, fez residência médica em obstetrícia na Maternidade João Moreira, e voltou para sua Olho D’Água dos Borges disposto a ajudar a população mais carente, onde ficou três meses esperando condições que a Prefeitura não tinha. Foi então contratado pelo 3º Batalhão de Engenharia do Exército para atuar em Assu. Nos três meses em que ficou por lá também foi contratado pelo Estado como Clínico Biometrista, para atuar em escolas públicas, cargo que foi aposentado compulsoriamente ao chegar aos 70 anos.
Era junho de 1970 quando, finalmente, Dr. Anchieta chegou a Mossoró para escrever uma história de grande valor. Logo no mês seguinte, assumiu compromisso com sua namorada de nove anos, casando com Vanilda Lopes Fernandes, falecida a pouco mais de três anos, e com quem teve três filhos: Jensen Augusto, médico atuando em Natal; Kamala Lopes, farmacêutico bioquímico que atua em Mossoró; e Kamilo Agostinho, cirurgião dentista buco maxilo.
No Tiro de Guerra 07-010, ocupou um lugar onde ninguém queria ficar por não ser remunerado: Médico da Comissão de Seleção. “Eu tinha servido no Tiro de Guerra e mantive meu amor pela instituição. Sempre sonhei em ser militar, e vi ali a oportunidade de realizar este sonho. Como eles não conseguiam um médico aceitei de pronto a tarefa que em nada me prejudicaria. Foram 39 anos de serviços devidamente reconhecidos através de medalhas, diplomas e homenagens, com direito a foto na galeria. Uma atividade que muito me honra”, conta.
NA CASA DE SAÚDE SANTA LUZIA – Desde que havia chegado a Mossoró, Dr. Anchieta auxiliava nas cirurgias de alguns médicos da cidade. Entre eles estavam Dr. Leodécio Néo, Dr. Cesar Alencar, Dr. Rosado Cantídio. Agradável, sempre disposto ao trabalho, não foi difícil para ele se adaptar a vida de correrias e responsabilidades de um médico cirurgião. Foi estas virtudes que o fizeram receber do Dr. Clóvis Miranda, hoje com mais de 90 anos e na época um dos acionistas da Casa de Saúde Santa Luzia, a proposta para também se tornar sócio acionista.
Dr. Anchieta achou a proposta fora de suas condições financeiras, dizendo que não teria como pagar. Mas Dr. Clóvis o convenceu que o próprio trabalho pagaria suas cotas. “Foi o que aconteceu. Antes do prazo que acordamos eu já tinha quitado minhas ações, algo em torno de 4% do total”, lembra. Seu trabalho era fazer parto, principalmente, mas também outras pequenas cirurgias. O INPS, que era o SUS daquela época, pagava bem, e logo a rotina de quase 20 horas diárias de serviços de Dr. Anchieta possibilitou o acerto de seu acordo com a Casa de Saúde.
E assim se passaram 44 anos de sua vida, dividindo-se entre seus dois lares: sua casa e a Casa onde tantas famílias tiveram a alegria do nascimento comemorada ao lado de Dr. Anchieta. Em 2009 a grande dor: problemas que afetam toda a rede de saúde do país, fruto da incompetência de políticos corruptos e descompromissados com o Brasil, fizeram a Casa de Saúde Santa Luzia fechar suas portas.
Dr. Anchieta, acostumado com a rotina de consultas, internamentos que conseguia através de seu bom coração, partos de última hora, cirurgias a qualquer momento, agenda sempre lotada, mas nunca perdendo a doçura, se viu em um vazio existencial. “Foi muito duro para todos nós. Minhas pernas haviam sido quebradas”, conta.
A FORÇA DA PALAVRA EM SUAS CONSULTAS – Outra perda ocorreu com a partida de sua esposa em 2012. Sua fortaleza, companheira de levantar seu astral, amiga de todas as horas, cúmplice de tudo na vida. “Ainda não consegui superar sua ausência. Em muitas horas sinto falta do diálogo, de sua opinião, que me dava segurança, me clareava os caminhos. É como se a vida tivesse ficado mais sem graça, sem luz”, revela.
Problemas de saúde começaram a surgir de uns anos para cá que fizeram Dr. Anchieta deixar a sala de cirurgia, ficando apenas com as consultas. No entanto, ele diz estar em um período de conformação, entendendo que o que passou não volta mais, somente nos constantes sonhos que tem sido chamado para alguma cirurgia de urgência no meio da noite. Ler muito, toma de vez em quando um Whisky e fica avaliando uma nova noiva. “Quem sabe ainda encontro alguém que dê certo comigo”, sorrir. Maçon e Rotariano há mais de 35 anos, cheio de amigos, querido por muitos na cidade devido suas caridades em horas de difíceis, como os partos de riscos que sempre contavam com sua palavra de confiança, Dr. Anchieta se lembra da frase que estava escrita no seu birô do colégio Diocesano: ‘O tempo não volta, estude’.
Abre um livro e mostra o que Malba Tahan escreveu em ‘As Mil e Uma Noites’: ‘Há quatro coisas que não voltam: a pedra atirada; a palavra dita; o tempo que passou e a ocasião perdida.’ Isto para dizer o quanto sempre foi importante em sua carreira profissional se importar com o próximo, em todos os momentos. Para ele, muitas vezes, uma palavra de compreensão, o bom ouvido, um ‘Bom Dia’ dado, funcionava mais do que a medicação recomendada. “São receitas para a alma”, revela.
Foi o que Dr. Anchieta fez durante toda sua vida, dedicando-se ao estudo e se esforçando para servir, sem vaidades, amando sua profissão com a consciência tranquila e o sentimento de felicidade, tratando o corpo e o espírito de suas pacientes de forma conjunta, com respeito que todas elas mereceram ter, a toda hora.
Do Blog: Dr. Anchieta foi o primeiro Vice-prefeito eleito pelo voto direto, deste município, na chapa encabeçada por Antonio Carlos de Paiva, o saudoso Caiçara.
Fonte: O bomdemossoro/Gilberto Dias