Com o apoio do governo, a Câmara dos Deputados deverá votar nos
próximos dias uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que altera
regras do chamado teto de gastos e cria novas normas para o pagamento de
precatórios.
A medida é vista por especialistas e parlamentares de oposição como
uma manobra do governo para abrir espaço fiscal e financiar, entre
outras coisas, o pagamento do Auxílio Brasil, um novo programa social. O
que pouca gente sabe é que a aprovação da PEC pode afetar não só a
confiança do mercado, mas professores da rede pública de Estados e
municípios.
Precatórios são dívidas da União com diversos tipos de credores que a
Justiça já reconheceu e sobre as quais não há possibilidade de recurso.
Todos os anos, tribunais de todo o Brasil enviam uma relação dos
precatórios (dívidas) que a União deverá pagar. A polêmica em torno do
assunto começou no segundo semestre deste ano quando o governo passou a
procurar formas de abrir espaço no orçamento de 2022 para financiar um
novo programa social, agora batizado de Auxílio Brasil.
A previsão é de que o governo deveria pagar R$ 89,1 bilhões em
precatórios em 2022. O governo procurou alternativas para evitar o
pagamento desse valor, mas vem encontrando resistência em diversos
setores, especialmente de agentes econômicos que criticam a medida e
classificam como uma espécie de “calote”.
Mesmo assim, o governo apoiou a PEC nº 23/2021, que ficou conhecida
como PEC dos Precatórios. Na prática, ela abre espaço no orçamento do
ano que vem de duas formas. Se for aprovada na Câmara, ela ainda precisa
passar pelo Plenário do Senado antes de ser promulgada e entrar em
vigor.
De um lado, a proposta altera a forma de correção do teto de gastos
do governo. Até agora, a correção do teto de um ano era feito pela
inflação calculada pelo IPCA entre julho e junho do ano anterior. O
texto do relator Hugo Motta (MDB-PB) muda a regra e propõe a correção
para o período de janeiro a dezembro e de forma retroativa a 2017,
quando o teto entrou em vigor. Segundo dados do Instituto Fiscal
Independente (IFI), essa mudança abriria uma margem de gastos para o
governo federal em R$ 47,4 bilhões.
A segunda parte da PEC é que a muda as regras para o pagamento de
precatórios. E é essa que pode acabar afetando os professores —
possivelmente provocando atrasos para docentes da rede estadual e
municipal em alguns lugares.
Rolar a dívida
Em 2022, o governo deveria pagar R$ 89,1 bilhões, um aumento de 64%
em relação ao valor previsto para 2021, que foi de R$ 54 bilhões. Esse
crescimento foi classificado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes,
como um “meteoro” nas contas públicas.
A PEC prevê o estabelecimento de um “teto” anual para o pagamento de
precatórios. Em 2022, esse valor seria de R$ 41 bilhões. Considerando a
dívida de R$ 89,1 bilhões, isso deixaria em aberto um total de R$ 48,1
bilhões para o ano seguinte.
O problema é que desses R$ 89,1 bilhões, pelo menos R$ 16 bilhões são
referentes a dívidas que a União tem com os Estados da Bahia, Ceará,
Pernambuco e Amazonas por conta de um erro do governo no repasse de
recursos do antigo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), que depois foi
substituído pelo Fundo de Manutenção da Educação Básica (Fundeb).
Pela legislação, o governo federal deveria fazer uma complementação
ao salário dos professores da rede pública por meio do Fundef. Alguns
Estados e municípios, no entanto, processaram a União alegando que o
cálculo usado por ela para fazer os repasses era incorreto, ocasionando
prejuízos.
Os casos foram levados ao Supremo Tribunal Federal (STF) que, nos últimos anos, vêm dando ganho de causa contra a União.
Uma lei de 2020 prevê que 60% dos valores de precatórios devidos pela
União como pagamento de dívidas dos tempos do Fundef deveriam ser
direcionados aos professores dos Estados e municípios que receberem os
valores.
O texto da PEC, porém, prevê mecanismos que dificultam que esses
entes recebam as dívidas, o que, em última instância, prejudica os
professores.
Um desses mecanismos prevê que se a dívida não for paga dentro do
teto estabelecido pela PEC, o Estado ou município credor pode optar por
receber no final do ano seguinte com um desconto de até 40%. Na prática,
isso poderia diminuir o valor a ser pago aos professores.
Outro dispositivo prevê que o credor que não quiser optar pelo
desconto de 40%, pode receber a dívida em até 10 anos, o que também
afetaria os professores.
Um terceiro mecanismo é o chamado “encontro de contas”. Neste caso, a
União poderá propor ao credor que a dívida da União (precatório) seja
abatida do total de débitos que ele possa vir a ter com o governo
federal.
Um exemplo é o do governo da Bahia que, em 2020, tinha uma dívida com
a União de R$ 5,3 bilhões. Em maio deste ano, o STF deu ganho de causa o
governo baiano e determinou que a União pagasse R$ 8,7 bilhões em
precatórios relativos ao Fundef. Se a PEC for aprovada, o governo
federal poderá propor uma espécie de abatimento da dívida, o que, ao
final, reduziria o valor a ser recebido pelo Estado da Bahia, afetando,
também, o quanto os professores receberiam.
‘Tudo ou nada’
Para o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da
Educação (CNTE), Heleno Araújo, a PEC é “absurda” e permite que o
governo faça política assistencialista com recursos que não lhe
pertencem.
“A PEC é absurda e ilegal. O que o governo quer é fazer pegar um
dinheiro que não é seu para fazer política assistencialista em ano
eleitoral. Se isso passar, vai desestruturar qualquer confiança que se
tenha em decisões da justiça contra a União”, afirmou.
A política assistencialista à qual Araújo se refere é o programa
Auxílio Brasil, lançado pelo governo e que prevê o pagamento temporário
de R$ 400 a pessoas em situação de extrema pobreza. Estima-se que o
benefício vai atender a 17 milhões de famílias. A expectativa era de que
o benefício começasse a ser pago a partir de novembro deste ano, a
partir do fim do auxílio emergencial referente à Covid-19.
O economista e fundador e secretário-geral da organização
não-governamental Contas Abertas, Gil Castelo Branco, avalia a PEC como
uma manobra eleitoreira e que pode prejudicar não apenas os professores,
mas o país como um todo.
“A PEC permite o estouro do teto e compromete a confiança do mercado
na política fiscal do país. O governo foi para o tudo ou nada de olho
nas eleições. É ruim para os professores, que tinham uma expectativa de
ganho, mas é ruim também para a população em geral porque isso pode
causar crise que afeta a economia”, afirmou o economista.
Procurado pela BBC News Brasil, o Ministério da Economia enviou nota afirmando que não iria comentar o assunto.
Na semana passada, porém, o ministro da Economia, Paulo Guedes,
defendeu, ao lado do presidente Jair Bolsonaro, a mudança nas regras do
pagamento de precatórios e na correção do teto de gastos.
“Eu falei: ‘Olha, furamos o teto ano passado para atender a saúde. Os
efeitos econômicos sobre os mais frágeis foram devastadores, todo mundo
está dizendo que os mais pobres estão sem comida, sem gás, tendo que
cozinhar com lenha. Ora, ninguém quer tirar 10 em (política) fiscal e
deixar os mais frágeis passarem fome”, afirmou o ministro.
Castelo Branco diz ainda que, apesar do discurso do governo, o
estouro do teto gerado pela PEC dos Precatórios não vai financiar apenas
o Auxílio Brasil, mas também será usado para bancar as chamadas
“emendas de relator”, um tipo de emenda parlamentar mais difícil de
rastrear em que a destinação dos recursos é feita pelo relator-geral do
orçamento.
Reportagens publicadas pelo jornal O Estado de S. Paulo ao longo
deste ano mostraram que esse tipo de mecanismo estaria sendo usado
irregularmente pelo governo para beneficiar parlamentares da base. O
governo, por sua vez, se defende afirmando que políticos de oposição
também teriam recebido recursos das emendas de relator.
O diretor-executivo do Instituto Fiscal Independente do Senado (IFI),
Felipe Salto, avalia que a PEC dos Precatórios poderá custar caro ao
país porque o estouro do teto deverá afetar a confiança do mercado nas
contas públicas.
“O que está acontecendo é que o governo quer abrir espaço no
orçamento para prioridades eleitorais. O governo quer fazer espaço para
emendas de relator e gasto social, que é importante, mas que poderia ser
feito dentro do teto. Essa história é uma inovação que vai custar caro
ao país porque vai afetar a credibilidade no governo”, explicou.
Por Leandro Prazeres/ BBC News Brasil em Brasília