O desfile de 7 de setembro foi coisa de ditador


 Bolsonaro transformou festejos do bicentenário da independência em comício eleitoral (Foto: reprodução)


Por Rogério Tadeu Romano*

I – O EXEMPLO NORTE-AMERICANO

Em excelente artigo para o Estadão, em 5 de setembro do corrente ano, Marcelo Godoy trouxe a colação o interesse de Donald Trump por um desfile militar nos Estados Unidos, em exaltação a sua pessoa:

“Em outra reunião, com a presença do general Paul Selva, vice-chefe do Estado-Maior Conjunto, Trump perguntou o que Selva achava do desfile. Oficial da Aeronáutica, Selva disse: “Não cresci nos Estados Unidos. Cresci em Portugal. Portugal era uma ditadura, e os desfiles serviam para mostrar às pessoas quem detinha as armas. E, neste País, nós não fazemos isso”. Trump insistiu e perguntou se ele não gostava da ideia. “Não. Isso é coisa de ditadores.”

Pois bem.

Fala-se que o atual presidente da República, em plena campanha militar, quer usar as armas militares das Forças Armadas, para mostrar que elas estão ao lado da população em seu projeto de poder.

Há o entendimento de que o atual presidente da República tenta intimidar quem crê que ele pode tentar alguma aventura autoritária ao sugerir que os militares o apoiam no golpismo.

II – OS MILITARES E O PODER

Na história do Brasil, os militares, até a Guerra do Paraguai, serviram ao Imperador. Após ela, serviram à Nação.

Estabeleceram os militares a ideia de que seriam curadores da República, desde a chamada proclamação, em 15 de novembro de 1889, em nome da Nação.

Assim agiram em 1930 com um movimento que levou ao fim da República Velha; em 1937, os militares foram fundamentais no projeto de instituição e, após, consolidação no Estado Novo, que instituiu uma ditadura no Brasil; em 1945 com o golpe branco que derrubou Getúlio Vargas, após o fim da Segunda Guerra Mundial, vencida pelos aliados, com os Estados Unidos da América a frente. Nesse tom, agiram nos acontecimentos que levaram ao suicídio de Vargas, em agosto de 1954 e a tentativa de golpe, em 11 de novembro de 1955, quando se tentou impedir a deposição de um presidente eleito pelo voto popular. Em 1964, como “braço armado” das forças liberais e conservadoras, com o apoio americano, a frente de um “golpe militar”, assumiram a Nação e dela somente sairiam em 1985 com a eleição de Tancredo Neves, em eleição indireta e a posse de Sarney, político que apoiou os militares naquele triste momento da história do país, em que a classe política foi expelida da vida pública. A emenda Constitucional n. 1 à Constituição de 1967, foi um verdadeiro modelo constitucional outorgado pelos militares.

Aceitaram a democratização com a Constituição de 1988 e voltaram ao poder com a eleição do atual presidente em 2018.

Como acentuou Bernardo Mello Franco, em artigo para o jornal O Globo, em 7 de setembro de 2022:

“A cúpula militar ajudou a eleger Bolsonaro. Em troca do apoio em 2018, garantiu privilégios, abocanhou salários acima do teto e ocupou áreas centrais do governo. Essa sociedade foi renovada com a indicação do general Braga Netto como candidato a vice na chapa à reeleição.”

III – AS FORÇAS ARMADAS NÃO SÃO PODER MODERADOR

Em razão disso ventilam o papel das Forças Armadas como Poder Moderador.

Dizer-se que as Forças Armadas consignam instituições nacionais é reconhecer-lhes a autonomia jurídica que deriva do seu próprio caráter institucional.

Por outro lado, declará-las como instituições permanentes e regulares significa dizer que elas estão ligadas à própria manutenção do Estado. Enquanto ele existir e durar, as Forças Armadas também perduram.

Hierarquia é o ato de subordinação sancionada e graduada de acordo com os níveis de autoridade. O presidente da República é o grau maior desse escalonamento (artigo 84, XIII, da CF).

Disciplina é o poder legal conferido aos superiores hierárquicos para impor comportamentos e ordens aos seus inferiores, um vínculo de acatamento e respeito.

A disciplina é um corolário de toda organização hierárquica, como disse Miguel Seabra Fagundes (As forças armadas na Constituição, 1955, pág. 23).

De acordo com a Constituição Federal de 1988, as Forças Armadas são integral e plenamente subordinadas ao poder civil, e que seu emprego depende sempre de decisão do presidente da República, que a adota por iniciativa própria ou em atendimento a pedido dos presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados.

Toda a carreira do militar da ativa é formalizada, previsível e institucionalizada por critérios objetivados, diria o ministro Ayres Britto. Etapas adequadas ao mérito e treinamento que tiveram. O soldo é predeterminado. A hierarquia profissional prevalece. São obrigados ao silêncio obsequioso. São proibidos de se manifestar politicamente.

A Constituição imperial dizia no artigo 98: “O Poder Moderador […] é delegado privativamente ao Imperador […] para que vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”.

Temos uma República julgada incapaz de se autogovernar, sujeita à tutela de um novo Poder Moderador.

Assim a garantia dos poderes constitucionais tornou-se a justificativa preferida pelas Forças Armadas para definir seu papel.

Esse entendimento levaria ao retorno das ideias de 1937 e dos Atos Institucionais que rasgaram a Constituição de 1946, com o golpe militar de 1964, no sentido de que as Forças Armadas seriam a garantia dos poderes institucionais não se amolda à Constituição-cidadã de 1988, que renega a ideia de que o poder civil é uma concessão do poder militar. Ficaria a sociedade entregue aos ditames militares, o que é uma afronta à democracia.

Os episódios de triste memória ocorridos entre 1964 e 1985 são um alerta.

Os militares são carreira de Estado. Em razão disso não são curadores da República, pois se subordinam ao Poder Civil.

IV – UMA TENTATIVA DE SEQUESTRO POLÍTICO DA DATA ELEITORAL POR UM MOVIMENTO POLÍTICO

Fala-se que o atual presidente da República, em plena campanha militar, quer usar as armas militares das Forças Armadas, para mostrar que elas estão ao lado da população em seu projeto de poder.

Há o entendimento de que o atual presidente da República tenta intimidar quem crê que ele pode tentar alguma aventura autoritária ao sugerir que os militares o apoiam no golpismo.

Marcelo Godoy (Bolsonaro transforma evento militar em comício: tudo junto e misturado, Estadão, 7 de setembro) nos disse ainda:

“Com um casaco preto, o presidente Jair Bolsonaro conseguiu o que queria: levou seu povo às ruas e o misturou às Forças Armadas. O palanque militar ao lado do Forte de Copacabana foi tomado por apoiadores de Bolsonaro com camisetas verde e amarelo enquanto o locutor acentuava o nome do candidato e o público respondia: “Mito!” O presidente desceu do palanque e foi cumprimentar seus apoiadores enquanto os canhões Exército disparavam suas salvas.

Tudo debaixo dos olhares de dois integrantes do Alto Comando do Exército, o comandante militar do Leste, general André Luiz Novaes, e o chefe do Departamento de Ensino da Força Terrestre, general Flávio Marques Barbosa, além de oficiais generais da Marinha e da Força Aérea. O palanque do evento militar se transformou em palco de evento partidário, com a presença de políticos e apoiadores, como o empresário Luciano Hang. A distância entre o carro de som onde Bolsonaro discursaria e o palanque militar que reuniu as autoridades militares passou despercebida de quem esteve na orla.”

No Rio, desde o posto 3 até o Forte, as pessoas com camisetas da seleção brasileira caminhavam e se aglomeravam em torno de carros de som entre os cariocas indiferentes ao comício que foram à praia no dia de sol. Eles aplaudiam as apresentações militares das Forças Armadas, como a da esquadrilha da fumaça. Diluía-se a fronteira entre o evento militar do bicentenário e a reunião de Bolsonaro, a exemplo do que ocorrera antes em Brasília. Entretanto, o chamado do presidente para que o povo em geral fosse às ruas apoiá-lo foi escutado apenas por seu povo.”

Em triste espetáculo, o 7 de setembro de 2022, ano do bicentenário de nossa Independência se transformou, com apoio dos militares, em afirmação do fascismo no Brasil, como um movimento de massa em defesa do autoritarismo. Foram verdadeiras manifestações político-partidárias.

Ora, as Forças Armadas não podem estar a serviço desse ou daquele movimento político-partidário em um estado democrático de direito.

O discurso do atual presidente da República, no 7 de setembro de 2022, não foi um discurso de chefe do Poder Executivo. Foi um discurso de candidato à reeleição:

“Com a reeleição, traremos para as 4 linhas todos os que ousam ficar fora delas”, disse o presidente da República, que no entanto evitou atacar frontalmente a Corte e os ministros. Durante o breve discurso, Bolsonaro também repetiu bordões de sua campanha eleitoral, como a suposta luta do bem contra o mal. Também fez críticas ao PT. “Sabemos que temos pela frente uma luta do bem contra o mal. Um mal que perdurou por 14 anos no nosso País, que quase quebrou a nossa Pátria e que agora deseja voltar À cena do crime. Não voltarão! O povo está do nosso lado. O povo está do lado do bem. O povo sabe o que quer”, disse.

E ainda falou:

“Quero dizer que o brasileiro passou por momentos difíceis, a história nos mostra. 22 (1822, Independência), 64 (golpe militar de 1964), 16 (2016, impeachment de Dilma Rousseff), 18 (2018, sua eleição) e, agora, 22. A história pode se repetir. O bem sempre venceu o mal”, discursou.

Disse ainda Vera Magalhães (Atos de Bolsonaro ferem lei eleitoral e estão longe da moderação, in O Globo):

“Pela manhã, no café no Alvorada, antes de sair para a micareta de campanha da Independência, fez alusão expressa a momentos de ruptura da História do Brasil.

Tudo isso está a dizer que o bicentenário da pátria foi sequestrado pelo bolsonarismo.

O esperado comício do presidente – candidato à reeleição pelo PL – na orla carioca ocorreria ao mesmo tempo em que a Marinha faria sua parada naval, a Força Aérea exibiria a esquadrilha da fumaça e os canhões do Forte de Copacabana saudaram o bicentenário da Independência. Os bolsonaristas se misturariam a bandas militares e a uma exibição de paraquedistas do Exército e da Aeronáutica.

Bem lembrou Cristina Serra (Tratoraço militar golpista, in Folha de São Paulo, 6 de setembro de 2022):

“As Forças Armadas fazem o movimento mais perigoso ao se imiscuírem em um ato de campanha eleitoral do presidente, como o que está previsto para o Rio de Janeiro, até mesmo com a exibição de equipamentos militares (pertencentes ao Estado e ao povo brasileiro). A mistura de motociata com aviões da Aeronáutica, navios da Marinha e canhões do Forte de Copacabana é promiscuidade institucional explícita.”

Foram atos de campanha que “atropelaram” a festiva data de 7 de setembro que é uma comemoração da Nação.

“Houve um evento oficial, que atraiu muita gente, com despejo de recurso público para criar superestrutura para esse evento naquele contexto, ato contínuo, quase no mesmo espaço, você teve um evento particular, de campanha, que teve aquela repercussão e alcance em grande parte graças a tudo que tinha acontecido antes”, destaca Volgane Carvalho, secretário-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

V – UMA HIPÓTESE CONCRETA DE ABUSO DE PODER POLÍTICO E ECONÔMICO

Isso é inconcebível.

“Houve um evento oficial, que atraiu muita gente, com despejo de recurso público para criar superestrutura para esse evento naquele contexto, ato contínuo, quase no mesmo espaço, você teve um evento particular, de campanha, que teve aquela repercussão e alcance em grande parte graças a tudo que tinha acontecido antes”, destaca Volgane Carvalho, secretário-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

Por si só, é vedado o uso do serviço público, de servidores do Estado, durante a campanha eleitoral.

O princípio básico que deve nortear as condutas dos agentes públicos no período de eleição está disposto no caput do art. 73 da Lei nº 9.504, de 1997, ou seja, são vedadas

“… condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais”.

Conforme o Tribunal Superior Eleitoral, “As condutas vedadas (Lei das Eleições, art. 73) constituem-se em espécie do gênero abuso de autoridade”. Assim sendo essas condutas, além de abusivas, afrontam o processo eleitoral, confrontam a Constituição, pois revelam ato atentatório à probidade de modo que o chefe do Executivo age de forma afrontosa à dignidade da função.

De acordo com o art. 74 da Lei 9.504/1997, configura abuso de autoridade, para os fins do disposto no art. 22 da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, a

infringência do disposto no § 1º do art. 37 da Constituição Federal, ficando o responsável, se candidato, sujeito ao cancelamento do registro ou do diploma.

Assim, a prática de condutas vedadas pela Lei nº 9.504, de 1997 pode vir a ser apurada em investigação judicial e ensejar a aplicação do disposto no art. 22 da Lei Complementar nº 64, de 1990, que trata do uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, da utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou partido político. (TSE, AG nº 4.511,

Acórdão de 23/03/2004, relator Ministro Fernando Neves da Silva).

Registre-se que para o TSE, o “abuso do poder político qualifica-se quando a estrutura da administração pública é utilizada em benefício de determinada candidatura ou como forma de prejudicar a campanha de eventuais adversários, incluindo neste conceito quando a própria relação de hierarquia na estrutura da administração pública é colocada como forma de coagir servidores a aderir a esta ou aquela candidatura (…). ” (Recurso Ordinário nº 265041, Relator (a) Min. Gilmar Mendes, DJE 08/05/2017).

Evidente a potencialidade lesiva do evento acima registrado com relação às eleições de 2022.

As Forças Armadas não podem, em qualquer hipótese, estar a serviço de um governante e muito menos alguém que pretende ser ditador. Elas servem à Nação.

Para o caso é indispensável, pelos legitimados, o ajuizamento de Ação de Investigação Judicial Eleitoral, objetivando investigar abuso de poder político e econômicos nos atos de 7 de setembro de 2022, com participação das Forças Armadas, em flagrante desvirtuamento do processo eleitoral.

A ação de investigação judicial eleitoral tem seus efeitos previstos no artigo 22, inciso XIV, da Lei Complementar 64/90 e são eles: decretar a inelegibilidade, para essa eleição, do representado e tantos quantos tenham contribuído para a prática do ato; cominação de sanção de inelegibilidade; cassação de registro de candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico e de desvio ou abuso de poder de autoridade.

Abuso de poder político é o uso indevido de cargo ou função pública, com a finalidade de obter votos para determinado candidato.

Por outro lado, abuso de poder político pode ser visto como atuação ímproba do administrador, com a finalidade de influenciar no pleito eleitoral de modo ilícito, desequilibrando a disputa. Adriano Soares da Costa (Instituições de direito eleitoral, 5ª edição, pág. 530) já entendeu que “ a AIJE apenas pode ser proposta após o pedido de registro de candidatura e antes da diplomação dos eleitos”.

VI – A FALTA DE DECORO NO CARGO

Os atos lamentáveis acima descritos se subsumem em evidente improbidade administrativa e ainda em falta de decoro para o exercício do cargo, situações que levam ao impedimento do chefe do Executivo.

Ademais, poder-se-ia entender que se trataria de crime de responsabilidade envolvendo a probidade da administração, do que se lê da Lei nº 1.079/50:

Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:


7 – proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.

Aliás, Paulo Brossard (O impeachment, 1992, pág. 54) ensinou que a própria Constituição estatui, no artigo 89 caput, da Constituição de 1946, que “são crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal”. E só depois de haver traçado essa regra básica é que acrescenta: “e, especialmente, contra….”, seguindo-se os oito itens exemplificativamente postos em relevo pelo constituinte, pelo que incumbiu o legislador da tarefa de decompô-los e enumerá-los.

Mas ela mesma prescreveu que todo atentado, toda ofensa a uma prescrição sua, independente de especificação legal, constituii crime de responsabilidade.

Constitui crime de responsabilidade contra a probidade da administração “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. De forma semelhante dispunha o Decreto nº 30, de 1892, ao preceituar, no artigo 48, que formava seu capitulo VI, ser crime de responsabilidade contra a probidade da administração “comprometer a honra e a dignidade do cargo por incontinência política e escandalosa, ……, ou portando-se com inaptidão notória ou desídia habitual no desempenho de suas funções”.

É uma conduta afrontosa à Constituição, à sociedade, ao Estado Democrático de Direito.

VII – A ADVERTÊNCIA DO MINISTRO LEWANDOWISKI

As Forças Armadas não podem, em qualquer hipótese, estar a serviço de um governante e muito menos alguém que pretende ser ditador. Elas servem à Nação.

A firmeza de atitude dos militares pode evitar que a egolatria do mandatário que quer se transformar em ditador destruía o país.

Isso é o que se espera da Forças Armadas que devem servir ao modelo do Estado Democrático de Direito e não a aventuras autoritárias.

Disse bem o ministro Ricardo Lewandowiski (Independência ou Morte, in Folha de São Paulo, 7 de setembro de 2022):

“Dessa saga memorável decorre que a ninguém é lícito apropriar-se da data de nossa Independência com fins político-partidários, muito menos com o propósito de dividir os brasileiros, definitivamente vocacionados para a fraternidade, porquanto ela pertence ao povo, não aos governantes eleitos para representá-lo temporariamente, aos quais cabe, tão somente, rememorá-la a cada ano, de forma condigna e respeitosa, para celebrar o triunfo da liberdade sobre a servidão e o despotismo.”

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

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