O governo federal estima que 429.630 famílias não têm cisternas no
semiárido brasileiro e, em meio à pior seca dos últimos 50 anos,
dificilmente têm acesso à água. Os dados fazem parte do cadastro único
do Brasil Sem Miséria, utilizado pelo governo para garantir que as
famílias extremamente pobres da região tenham água disponível. Na última
sexta-feira (5), o governo federal publicou no Diário Oficial da União
dois decretos que tratam de programas de abastecimento de água no
Nordeste e zonas rurais do país.
O decreto 8.038 regulamenta o Programa Cisternas, que prevê garantias
de fornecimento de água para consumo humano e para produção de
alimentos. Os beneficiados serão integrantes de famílias de baixa renda
da zona rural atingidas pela seca ou que sofram com falta regular de
água. O texto altera artigos da norma que criou o Programa Água para
Todos e institui dois comitês administrativos, sendo um gestor e outro
operacional, ambos formados por integrantes de ministérios e
representantes de trabalhadores rurais.
Com o Programa Um Milhão de Cisternas, criado em 2003, o governo
pretendia levar cisternas a todas as famílias do semiárido até 2008, a
fim de minimizar os efeitos das secas. O Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome (MDS) informa que apoiou a implementação de
584.282 cisternas de placa na região Nordeste, em parceria com estados,
municípios e organizações da sociedade civil, número pouco maior que a
metade do previsto. Apenas em 2013, foram 37.374 até junho.
Como a meta não foi cumprida, em 2011 foi criado o programa Água Para
Todos, com objetivo de entregar 750 mil cisternas até o fim de 2014, com
custo previsto de R$ 2,9 bilhões. Até o momento, 320.370 cisternas
foram entregues, 42% da meta, de acordo com o Ministério da Integração.
O Água Para Todos é voltado para famílias residentes nas áreas rurais
do semiárido, com acesso precário à água, inscritas no Cadastro Social
Único do Governo Federal e com renda familiar per capita de até R$ 140
mensais, além de aposentados que vivam exclusivamente da renda
previdenciária.
Segundo o cadastro único, cerca de 770 mil famílias se enquadram hoje
nessa exigência no semiárido. O Ministério do Desenvolvimento Social diz
que há, atualmente na região, 1.134 municípios que possuem cisterna e
43 municípios que estão em fase de contratação – uma cobertura de 97%.
Ainda assim, em razão da seca persistente, mesmo as famílias que
possuem as cisternas têm o acesso à água restrito. Segundo o governo,
não é possível saber se todas as cisternas estão sendo abastecidas.
"O objetivo é que não [fiquem desabastecidas], mas daqui de Brasília
não consigo te garantir isso. Não me pede para botar meu CPF nesse
negócio", afirma ao G1 Francisca Rocicleide Ferreira da
Silva, diretora do Departamento de Fomento à Produção e à Estruturação
Produtiva da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do
MDS.
Morador de Olho d'Água das Flores, em Alagoas, pega água de cisterna vizinha (Foto: Jonathan Lins/G1 AL)
A dependência dos carros-pipa, no entanto, faz com que o governo
acredite que, mesmo com as cisternas, muitas famílias estejam sem água.
"O carro vai preenchendo as cisternas, vai num lugar, não vai no outro.
Tem comunidades muito isoladas. A gente tem uma expectativa de que a
partir de outubro deste ano chegue a chuva. Enquanto isso não acontece,
não tem como garantir", diz Silva.
Cristina Nascimento, coordenadora executiva da Articulação Semiárido
Brasileiro (ASA) no Ceará, afirma que o programa de cisternas é um
avanço, mas ressalta que é preciso acelerar o processo. "A cisterna tem
um peso muito importante na vida dessas famílias, que são as mais
pobres, que mais sofrem. São famílias que moram em áreas com pequenos
barreiros, pequenos poços e não têm agua de qualidade para consumo
humano", afirma.
"Se essas famílias não têm cisterna, elas não têm onde estocar a água.
Além disso, ela é um equipamento que gera cidadania, porque é construída
em comunidade, com os próprios meios. Ela tem um peso muito
importante", completa.
Segundo Cristina, no entanto, a maior reclamação é a distribuição
inconstante de água pelos carros-pipa. "A água chegou, mas não chegou em
quantidade. Falta um planejamento dos órgãos públicos."
Cisterna vazia em Alagoas
Em Olho d'Água das Flores, no sertão alagoano, cidade com pouco mais de 15 mil habitantes, os moradores contam que chegam a ficar de uma semana a seis meses sem água. A seca atinge cerca de 40% da população na zona rural.
A
dona de casa Creuza Gomes da Silva, de 37 anos, tenta buscar água no
‘chafariz’, uma torneira dividida por todos os vizinhos. Desta vez, ela
voltou de mãos vazias na companhia do filho (Foto: Jonathan Lins/G1 AL)
A dona de casa Creuza Gomes da Silva, de 37 anos, moradora do sítio Craíbas, diz que metade das casas tem água encanada, mas que na dela não há nem sequer torneira. Ela busca água no "chafariz", como os moradores apelidaram uma torneira coletiva da rua. "Todo ano é a mesma coisa. Vivo desde que nasci aqui e, nesse tempo, nada muda", diz.
A agricultora Maria Madalena Ferreira Silva, 30,
grávida, busca água na cabeça de duas a três
vezes ao dia da cisterna da vizinha e guarda nos
fundos da casa (Foto: Jonathan Lins/G1 AL)
grávida, busca água na cabeça de duas a três
vezes ao dia da cisterna da vizinha e guarda nos
fundos da casa (Foto: Jonathan Lins/G1 AL)
Quando falta água no "chafariz", os filhos vão buscar em uma barragem
que fica a cerca de 1 quilômetro dali. Mas dura pouco. "Pego alguns
baldes de água pela manhã e à tarde já estamos precisando de novo",
relata.
A água serve para a família beber, lavar louça e tomar banho. A pequena
horta de feijão secou. "Falta água, comida, mas a gente se vira. Um
ajuda o outro."
Perto dali, a agricultora Maria Madalena Ferreira Silva, de 30 anos,
grávida, vive com o marido em uma pequena propriedade rural. Ela toma
água da cisterna da vizinha, que leva em baldes na cabeça de duas a três
vezes por dia. "Agora que estou com oito meses, trago pouca água",
conta.
O pequeno poço escavado ao lado da casa está vazio. "Só serve para
acumular sujeira que as pessoas passam e jogam. Construímos para encher
de água, mas isso nunca aconteceu", diz ela.
"Este ano foi muito pior. Até o feijão que plantamos no quintal não
vingou. Não sei como vai ser se isso continuar", conta Madalena sobre a
seca, "mais severa". Ela diz não ter esperanças de ter água encanada ou
uma cisterna em casa. "Não sei nem a quem pedir isso."
"A gente cadastra algumas cisternas e os vizinhos vão buscar lá. Foi a
maneira que encontramos de suprir a necessidade de todos", afirma a
secretária municipal, Ana Paula Rodrigues Fernandes. "É a Defesa Civil
quem faz esse abastecimento. Se não fosse assim, não teria como. É a
pior seca em mais de 50 anos. Antes ainda chovia, mas este ano a chuva é
pouca. A última vez foi há mais de trinta dias."
Indústria da secaOutro problema apontado pela ASA é a preferência do Ministério da Integração por cisternas de "plástico", pré-fabricadas de polietileno, em vez das de placa, entregues pelo MDS, construídas com cimento. "Isso beneficia grandes grupos. Como o governo faz opção por uma cisterna que não gera renda e custa duas vezes mais? É a reedição da indústria da seca", critica Cristina.
Segundo a coordenadora, as cisternas de plástico são "pronta-entrega", mas acabam estocadas em galpões porque não há mão-de-obra para entrega. "Compram em nome dessa pretensa agilidade, mas elas não estão nas casas das famílias. Já chegam deformadas porque não aguentam o calor. Por enquanto não conseguimos barrar isso", diz. "Com uma de plástico guardada, construímos duas de placa. Demora mais, mas vale mais."
Agricultora mostra cisterna que só enche com a
água da chuva, já que não é cadastrada para
abastecimento (Foto: Jonathan Lins/G1)
água da chuva, já que não é cadastrada para
abastecimento (Foto: Jonathan Lins/G1)
Segundo o ministério, o custo da cisterna de placa é entorno de R$ 2.200 e da cisterna de polietileno é de R$ 5.090. Mas diz que a de polietileno, com 16 mil litros de água para atender uma família de cinco pessoas por até seis meses, tem tempo de vida útil de mais de 30 anos, podendo ser implantada em um dia.
“A construção e instalação das cisternas são coordenadas por comitês municipais, que incluem treinamento e capacitação dos beneficiários”, diz o Ministério da Integração Nacional. “As cisternas que, por ventura, apresentarem defeitos de fabricação estão sendo imediatamente substituídas, conforme contrato, sem custos para o governo federal e os beneficiários do programa.”
Em
Olho d'Água das Flores, busca por água é diária. A moradora Creuza e os
filhos voltaram de mãos vazias da torneira coletiva. (Foto: Jonathan
Lins/G1 AL)
Busca ativaSegundo o governo, o programa Água para Todos tem como objetivo garantir o amplo acesso à água para as populações rurais dispersas e em situação de extrema pobreza, para o consumo próprio e para a produção de alimentos e a criação de animais.
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Segundo a diretora do MDS, quando o cadastro for finalizado, com
entrega de cisternas a todas as famílias, deve ser iniciada uma busca
ativa por aquelas que não se cadastraram para receber as cisternas."O governo considera que as ações do programa a partir do cadastro estabelecem uma finalização da extrema pobreza no acesso à água", afirma.
Além das cisternas de consumo e de produção, o governo também informou que está implementando sistemas coletivos de abastecimento para consumo humano, pequenos sistemas de irrigação e pequenas barragens de água pluvial. O investimento total previsto é de aproximadamente R$ 4,7 bilhões.
Para a coordenadora da ASA, se a meta de cisternas para consumo humano for cumprida em 2014, o próximo passo deve ser garantir água para produção, chamada "segunda água". "É fazer essas famílias poderem produzir seu próprio alimento, convivendo com o que o semiárido tem a oferecer", conclui.
Fonte: Globo.com