O pesquisador Emílio Meyer, da Universidade Federal de Minas Gerais, se
debruçou sobre os votos de 2010 do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a
Lei da Anistia e achou contradições entre os argumentos usados e as
normas do direito internacional.
Sua tese de doutorado sobre o assunto foi premiada pela Capes, fundação que avalia a pós-graduação.
Para Meyer, o STF deveria rever sua posição sobre a Lei da Anistia de
1979, norma que livrou de julgamento os que praticaram crimes políticos
no regime militar (1964-1985).
Em 2010, o entendimento da corte foi de que a lei não estava em
desacordo com a Constituição, diferentemente do que dizia a OAB (Ordem
dos Advogados do Brasil).
Em novembro daquele ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) –instituição judicial autônoma cuja convenção é assinada pelo
Brasil– condenou o Estado brasileiro por omissão nos casos de
desaparecimentos forçados na Guerrilha do Araguaia (1972-74), quando
cerca de 70 militantes foram mortos, e determinou que o país deve
penalizar criminalmente as violações ocorridas durante a ditadura.
Alexandre Rezende/Folhapress | ||
Emílio Meyer, pesquisador e professor da UFMG, defende novo exame da Lei da Anistia |
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Folha - O sr. contesta o argumento de ministros do STF de que a Lei
da Anistia precisa ser mantida pois se trata de um acordo político que
possibilitou a redemocratização. Por que essa tese não serve?
Emílio Meyer - A anistia foi um momento importantíssimo para
pavimentar o caminho da democracia. Mas não se pode entender que houve
um acordo político. Não tínhamos uma oposição efetiva que se
contrapusesse ao regime. Era o que chamamos de oposição consentida –mas
que ainda assim se esforçou para que a anistia não fosse também uma
autoanistia [para os militares]. Como isso não foi possível, a única
saída foi estabelecer uma anistia que pudesse funcionar de forma
recíproca. Aquela anistia não resultou, portanto, de um acordo.
Caso a lei seja revista, os militantes de esquerda também poderiam ser punidos?
Entendo que não. Abusos ou crimes praticados durante a ditadura já foram
responsabilizados ao Estado. Diversos processos que tramitaram na
Justiça Militar levaram a essas responsabilizações.
O Código Penal prevê que a maior parte dos crimes prescreve em até 20 anos.
Há crimes naquele período, como desaparecimento forçado, que são
considerados permanentes. Não é um entendimento só da CIDH, mas também
do STF [em 2009 e 2011 o STF autorizou a extradição à Argentina de
pessoas que promoveram sequestros há mais de 20 anos]. Em relação aos
demais crimes, apesar de serem denominados "graves violações aos
direitos humanos", é mais adequado dizer que são crimes contra a
humanidade: o Estado autoritário brasileiro autorizou a prática dessas
violações para um grande número de pessoas de um setor específico da
população, por questões políticas. Em função da normativa internacional
da qual o Brasil faz parte, é preciso reconhecer que tais crimes são
imprescritíveis.
E como tratar da tortura? A prática só foi incluída na legislação após o fim do regime.
De fato, só passou a existir juridicamente a partir de 1995. Mas os atos
que foram praticados, que chamaríamos hoje de tortura, eram outros
crimes no contexto da ditadura –maus-tratos, estupro, lesão corporal– e,
portanto, mereceriam reprimenda institucional. Também seriam passíveis
de classificação como crimes contra a humanidade.
O Ministério Público Federal tem ações contra responsáveis por
sequestros durante a ditadura nos casos em que a vítima continua
desaparecida, sob a alegação de que seriam casos em que o crime continua
em curso. Que tal?
Esse caminho é bastante importante. O órgão, logo após a decisão da
CIDH, procurou um caminho para cumpri-la. Como ela determinou que haja
responsabilização pelos crimes de desaparecimento forçado, diminuiu-se a
controvérsia sobre a forma de condenação. Há sete ações penais públicas
em curso.
Como a lei da Anistia poderia ser avaliada novamente pelo STF nos dias atuais?
O caminho mais imediato seria pelo julgamento dos embargos de declaração
[recurso para esclarecer pontos obscuros da decisão]. Apesar do recurso
ter limitações para rever o julgamento, há situações em que o STF
consegue dar uma amplitude maior. Além disso, temos um fato que veio
posteriormente, que foi a decisão da CIDH, o que poderia alterar o
veredicto. Outro caminho seria os processos em relação a
desaparecimentos forçados chegarem ao STF.
A nova composição ajuda?
É possível. Alguns dos atuais ministros não chegaram a externar uma
posição clara, com exceção do Joaquim Barbosa, que se manifestou
claramente a favor de novo julgamento. Mas eu considero que o perfil dos
atuais ministros é mais preocupado com o asseguramento dos direitos
humanos. Há um clima mais adequado para nova interpretação.
Como avalia a aplicação da justiça de transição no Brasil?
A justiça de transição tem quatro pilares: direito à verdade, à
reparação, a responsabilização e reforma institucional. Sobre o direito à
verdade, o mais significativo é a criação da Comissão da Verdade.
O direito à reparação é o pilar com a maior consolidação. Foi
regulamentado em 2001 com a Comissão de Anistia. Tem produzido um número
grande de julgamentos, com reparações econômicas e também simbólicas
-como atos públicos e alteração de nomes de ruas.
Responsabilização abrange, além da questão penal, aspectos
administrativos e civis. O Ministério Público tem ajuizado ações contra
pessoas que teriam sido responsáveis por violações. Concluiu que, se o
Brasil paga indenizações, pode então ir a esses agentes e determinar que
devolvam o dinheiro ou percam cargos e direito à aposentadoria.
Quando à questão penal, o mais próximo que temos são ações relacionadas aos desaparecimentos forçados.
E a reforma institucional?
É necessário dar passos mais significativos. O Brasil ainda conta com
agentes que supostamente violaram direitos humanos na administração
pública. Também na formação das Forças Armadas, não há grande
preocupação em dar uma formação em direitos humanos.
Como avalia o trabalho da Comissão Nacional da Verdade?
Extremamente salutar. No início, os membros estavam tateando no escuro.
Foi preciso definir alguns pressupostos. Parece que agora há uma
organização maior. Posteriormente, novas investigações devem poder fazer
parte da reconstrução da narrativa da história brasileira.
Há controvérsia sobre a ideia de que a Constituição deva se submeter a
tratados internacionais. Por que a decisão da CIDH deveria prevalecer?
Não vejo contradição. Por termos consentido, a partir de 1988, com a jurisdição da CIDH, temos que fazer cumprir essas decisões.
O STF já admitiu a importância do cumprimento desses tratados. Ele
estabeleceu que é impossível a prisão do depositário infiel baseado em
um tratado internacional. Além disso, a Constituição pede que se preste
atenção às normas internacionais de direitos humanos.
Folha de SP