Exumar também significa retirar do esquecimento. De algum modo, isso vem acontecendo com João Goulart há alguns anos.
Ele foi um homem popular: pouco antes do golpe, seu governo contava com razoável índice de aprovação segundo o Ibope. Entretanto, depois de deposto, foi rapidamente esquecido.
A censura do regime militar não permitia que seu nome fosse mencionado. Poucas pesquisas universitárias fizeram referência mais detida a ele até recentemente.
Morreu em 1976 na Argentina e foi preciso que o então presidente, general Ernesto Geisel, desse autorização para seu sepultamento em São Borja (RS). O Executivo não permitiu que a bandeira nacional ficasse a meio pau.
Isso vem se alterando nas últimas décadas. Hoje em dia, a trajetória de Goulart é bastante estudada, sua participação nos eventos que culminaram no golpe de 1964 é conhecida em detalhes e várias biografias têm sido publicadas. A exumação poderá esclarecer a suspeita de que ele teria sido envenenado.
Sua reputação também vem passando por um deslocamento de sentido. A esquerda sempre desconfiou de Jango. Leonel Brizola, seu cunhado, que defendeu a posse de Goulart em 1961 após a renúncia de Jânio Quadros, acusou-o de indeciso no famoso Comício da Central às vésperas do golpe. Mesmo seus amigos e assessores diretos, como Raul Ryff, viam deficiências e erros em sua atuação.
Muitos analistas da época supunham que Jango pretendia dar um golpe para permancer no poder. Depois que ele foi deposto sem oferecer resistência, foi chamado de covarde e despreparado.
Ultimamente, essas avaliações vêm se alterando. Pesquisas mostram que não há evidências empíricas comprovando que ele planejava um golpe. Sua trajetória, desde que foi ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, tem sido avaliada de modo mais benevolente. Familiares e militantes dos direitos humanos buscam valorizar sua memória como democrata.
Denúncias apaixonadas, como as que foram feitas contra Goulart logo após o golpe de 1964, assim como os "resgates históricos" e "reabilitações", costumam ser parciais.
Durante processos de justiça de transição, como o que o Brasil vive agora, há sempre o risco da constituição de narrativas romantizadas, não necessariamente pautadas pelo rigor histórico, mas pelas circunstâncias políticas. Entretanto, disputas de memória são sempre úteis para a busca, por vezes infrutífera, da verdade histórica.
CARLOS FICO é professor titular de história do Brasil da UFRJ (Federal do Rio)